A PEC é um antigo desejo de boa parte do mundo político que, publicamente, argumenta precisar se defender de coação judicial por discursos e posições ideológicas. Nos bastidores, o principal temor são as investigações a cargo do STF relativas à suspeita de corrupção na aplicação das bilionárias emendas parlamentares
(CBS NEWS) – A PEC da Blindagem, cujo texto de apenas cinco parágrafos foi aprovado nesta quarta-feira (17) pela Câmara, guarda em seu tamanho enxuto um leque de dúvidas e brechas com potencial de paralisar processos por todo o país, inclusive relativos a deputados estaduais.
O objetivo central do projeto é obrigar o STF (Supremo Tribunal Federal) a pedir licença prévia ao Congresso para processar criminalmente deputados federais e senadores, regra que existiu de 1988 a 2001 e que caiu devido a um amplo cenário de impunidade.
O projeto seguiu para análise dos senadores e, caso seja aprovado, será promulgado. Emendas à Constituição não passam por veto ou sanção presidencial.
A PEC é um antigo desejo de boa parte do mundo político que, publicamente, argumenta precisar se defender de coação judicial por discursos e posições ideológicas. Nos bastidores, o principal temor são as investigações a cargo do STF relativas à suspeita de corrupção na aplicação das bilionárias emendas parlamentares.
Veja, ponto a ponto, as brechas, dúvidas e potenciais efeitos da PEC.
MEDIDAS CAUTELARES
O primeiro ponto da PEC altera o atual parágrafo 1º do artigo 53 da Constituição, que hoje se resume a dizer que deputados e senadores serão submetidos a julgamento no Supremo.
A PEC acrescenta que “a qualquer tempo”, eles “somente serão alvos de medidas cautelares de natureza pessoal ou real dele [STF] provenientes”.
A interpretação é a de que a redação dá margem à blindagem de parlamentares, a qualquer tempo, contra medidas como busca e apreensão, quebra de sigilo, bloqueio de bens e de salários, inclusive na área cível.
“Há um risco de que se entenda que os parlamentares não poderão ser alvo de qualquer tipo de medida cautelar, mesmo oriundas de processos cíveis ou trabalhistas. Ou seja, ficam imunes mesmo com relação a ilícitos ou atos de descumprimento contratual sem qualquer relação com o mandato”, diz Guilherme France, gerente do centro de conhecimento anticorrupção da Transparência Internacional.
A redação sugere ainda um foro por prerrogativa alargado, incluindo proteção a fatos sem nexo com o cargo ou anteriores ao mandato, colidindo com jurisprudência do STF. Hoje congressistas só tem foro no STF por delitos criminais cometidos no exercício do mandato e relacionados a ele.
Medidas cautelares contra deputados federais determinadas por outras instâncias não são incomuns.
Recentemente, por exemplo, um deputado federal aliado de Hugo Motta (Republicanos-PB) foi alvo de busca e apreensão autorizada pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) por supostos delitos cometidos quando era deputado estadual.
O deputado federal Arthur Lira (PP-AL), um dos principais articuladores da atual PEC, teve anos atrás bloqueio de bens e de parte do salário ordenado pela Justiça do Paraná, em processos da área cível no âmbito da Lava Jato.
AVAL DO CONGRESSO
O segundo e terceiro parágrafos da PEC estabelecem a necessidade de autorização prévia de Câmara e Senado para que parlamentares sejam processados criminalmente no STF. A votação para licença, secreta, deve ocorrer em até 90 dias
Não há menção sobre período de transição. Como emendas à Constituição têm efeito imediato, processos em andamento podem ser congelados.
Em 2022, por exemplo, o STF decidiu que o abrandamento na Lei de Improbidade feito pelo Congresso no ano anterior valia para os casos em andamento.
“É possível que os parlamentares exijam uma autorização das Casas a que pertencem para a continuidade mesmo dos processos já iniciados. Afinal, qualquer novo ato no âmbito desses processos criminais representaria uma exceção à regra”, diz France.
Há também dúvida sobre o que acontece em casos ainda não julgados e que estejam em instâncias inferiores por não estarem relacionadas a foro. Eles terão que ser remetidos ao STF? Deverá haver autorização do Congresso para seguirem o curso?
Também não há menção sobre implicações caso o Congresso não delibere em até 90 dias. Especialistas ouvidos dizem haver certo consenso de que eventual omissão significa aprovação tácita ao processo. Outros dizem haver dúvida.
“Não há qualquer previsão sobre o que acontece se o prazo não for respeitado. Esse vazio normativo pode gerar insegurança jurídica e até paralisar investigações, já que processos em curso em instâncias inferiores precisariam ser remetidos ao STF e ficariam pendentes do aval político do Congresso”, diz Berlinque Cantelmo, advogado especialista em direito penal e sócio do RCA Advogados.
EFEITO CASCATA PARA DEPUTADOS ESTADUAIS
A Constituição estabelece que aos deputados estaduais aplicam-se as mesmas regras relativas a inviolabilidade e imunidade.
O STF já decidiu em casos específicos que as imunidades garantidas pela Constituição Federal aos deputados federais e senadores também são aplicáveis aos 1.059 deputados estaduais.
Caso essa interpretação prevaleça, os processos no âmbito estadual em todo o país que mirem deputados estaduais também precisarão de aval das respectivas Assembleias Legislativas.
PRESCRIÇÃO
O quarto parágrafo da PEC estabelece que só se o Congresso recusar o pedido do STF para processar parlamentares há suspensão da prescrição enquanto durar o mandato.
Em casos em que o processo permaneça suspenso sem que haja deliberação do Congresso, o tempo de prescrição segue, beneficiando parlamentares alvos de processos.
BLINDAGEM A PRESIDENTE DE PARTIDO
O último parágrafo da PEC estende o foro especial no STF a presidentes de partidos políticos com representação no Congresso Nacional.
Isso tem potencial de beneficiar políticos que comandam legendas, mas não têm mandato, como os das três maiores legendas da Câmara: Valdemar Costa Neto (PL), Edinho Silva (PT) e Antônio Rueda (União Brasil).
“Presidente de partido político não é autoridade pública. O partido político, embora carregue consigo ares eminentemente públicos, é pessoa jurídica de direito privado. Não há nenhuma razão, ainda mais em um contexto discursivo de tutela das prerrogativas do Congresso, em se estender o foro por prerrogativa de função a dirigente de partido político”, diz Guilherme Barcelos, doutor em direito constitucional e sócio do Barcelos Alarcon Advogados.
COMO FUNCIONA NA PRÁTICA
Se promulgada, a PEC deve ser alvo de questionamentos no STF, que pode considerá-la, no todo ou em parte, inconstitucional. O fato de a Constituição de 1988 ter estabelecido a blindagem dificultaria decisão nesse sentido.
A medida aprovada pelos constituintes, porém, tinha como pano de fundo a necessidade de proteção aos parlamentares em um ambiente em que o país havia recém-saído da ditadura, que perseguiu e cassou mandatos de políticos devido às suas posições políticas.
Além disso, a PEC da Blindagem tem diferenças e é mais ampla da regra que valeu de 1988 a 2001.
O STF também deverá se manifestar sobre a aplicação prática de vários pontos da proposta.
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