(UOL/FOLHAPRESS) – À beira do campo, comandando o Flamengo, a combinação da roupa é sempre a mesma. Tudo preto. Filipe Luís tem uma explicação: “É uma decisão a menos para tomar”.
A linha de raciocínio é a mesma de Steve Jobs, o fundador da Apple, adepto do minimalismo visual.
Filipe Luís prefere gastar energia com o que importa, como escalação, esquema tático e busca por resultados.
O técnico pode não impactar o mundo como um iPhone, mas quer marcar o futebol com suas digitais.
Gestão de pessoas é um dos pilares desse processo. Novos contratados passam por um trabalho intenso de assimilação dos conceitos.
Filipe Luís se preocupa em passar conteúdo aos jogadores. Inclusive os do GPS, que mostram os dados do desempenho nos treinos.
Um dos principais jogadores do Flamengo e do país, Pedro sentiu o peso dessa proposta. A entrevista na qual o técnico dispara contra o atacante se tornou histórica.
Filipe Luís não economizou nas críticas ao camisa 9, em nome da defesa do que chama “cultura de treino”.
Essa foi uma das diretrizes que aprendeu com Diego Simeone, seu técnico no Atlético de Madri e uma de suas referências. A dedicação máxima no treinamento é inegociável.
Quando viu um dos seus ex-companheiros, agora comandado, deixando a peteca cair, comunicou que o tratamento seria de choque.
Filipe Luís gosta de mensagens diretas e claras no dia a dia. E levou isso ao nível máximo com Pedro. A diretoria sabia o que ele falaria.
Os resultados seguintes e a resposta do artilheiro ajudam a dar razão ao técnico, que agora fala publicamente que Pedro precisa ser considerado pelo técnico da seleção brasileira, Carlo Ancelotti, para a próxima Copa.
Esse modo de pensar ajudou a levar o time à final da Libertadores, sábado, às 18h (de Brasília), contra o Palmeiras, e à expectativa da conquista do Brasileirão -se vierem, os títulos serão sem Pedro, machucado nesta reta final.
Na competição nacional, são cinco pontos de vantagem justamente sobre o Palmeiras, faltando duas rodadas para o fim da competição.
SOB INFLUÊNCIA
Filipe Luís foi forjado em um ambiente cheio de manias. Primeiro no Atlético de Madri de Diego Simeone, e depois já no Flamengo, com o português Jorge Jesus.
Quando estava na Espanha, Filipe adotou até o uso do “kiricocho”, termo popularizado pelo técnico argentino Carlos Bilardo, campeão mundial pela Argentina em 1986, para tentar “secar” algum lance de ataque rival. Simeone é discípulo de Bilardo.
“Simeone e o staff têm muitas manias. Dia de jogo, indo para o estádio, é a mesma música. No vestiário, a mesma música. Simeone sempre com a mesma roupa. O Óscar Ortega, que era preparador físico, sempre que a equipe adversária chegava próximo ao nosso gol, começava a falar ‘kiricocho’. O Filipe usava isso também, pegou essa mania”, conta Guilherme Siqueira, ex-jogador e empresário de Filipe Luís na vinda ao Flamengo em 2019 e nas renovações contratuais como jogador.
Como lateral-esquerdo do clube carioca, Filipe Luís tinha que beber uma dose de energético, como os outros jogadores. Mas, por superstição, ela precisava vir direto da mão do nutricionista.
O lado metódico vai além de batidas na mesa ou expressões específicas. Detalhista, ele dedica muitas horas ao trabalho.
No Ninho do Urubu, funcionários dizem que chega cedo e sai só depois de anoitecer. São várias as noites mal dormidas, nas quais ele diz ficar pensando sobre os jogos.
Filipe não mergulha apenas no Flamengo. A imersão se estende aos times europeus e aos técnicos que estão por lá.
Entre os jogos que vê com mais atenção estão os do Arsenal de Mikel Arteta, do PSG de Luis Enrique e, por influência de José Boto, o Olympique de Marselha de Roberto de Zerbi.
“Estudo todas as semanas, assisto aos jogos das equipes que eu acho que me servem como modelo para que eu possa pegar ideias, soluções dessas equipes europeias ou brasileiras que enfrentam as situações durante a semana. E sempre nos dão algumas ideias para o nosso repertório”, diz Filipe Luís.
O técnico bate na tecla de que o jogo é muito mais complexo do que o torcedor enxerga. Ao mesmo tempo, vê como elogio algumas críticas dizendo que o Flamengo joga sempre igual. Para ele, isso significa um time com identidade.
E essa versão de Filipe Luís à disposição do Flamengo só existe porque ele disse um não à CBF. Era janeiro de 2024, a entidade estava mudando a estrutura da seleção.
“Eu ainda não tinha trazido [o diretor] Rodrigo Caetano e estava querendo mudar a sub-20. Fiz o convite para ficar na sub-20 e também ser o assistente técnico do Dorival [Júnior] na principal. Ele pediu um período para pensar. Ficou agradecido pelo convite. Depois, ligou e falou que preferia estudar mais. Não chegou nem à parte de discutir valores”, afirma Ednaldo Rodrigues, ex-presidente da CBF, à reportagem.
Filipe Luís depois foi anunciado no sub-17 do Flamengo, iniciando a trajetória meteórica no clube.
QUAL A IDENTIDADE DELE?
Filipe Luís hoje é o resultado da mistura entre Jorge Jesus, Diego Simeone e um tempero brasileiro com rodagem na Europa.
Os treinos do português foram todos anotados -Filipe Luís, inclusive, é o primeiro a comandar o Flamengo por mais de um ano desde Jesus.
De Simeone, o ex-lateral incorporou a cultura de treino e trabalho que, segundo o próprio Filipe, mudou sua vida.
Quando ainda estava tirando a licença da CBF, semanas após se aposentar, já tinha na cabeça: queria um estilo próprio.
Filipe evitava dar detalhes em entrevistas para não revelar como queria montar seus times. Esse zelo é um dos motivos que levaram a presença da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD) em um treino antes de enfrentar o Palmeiras pelo Brasileirão a irritá-lo -ele viu o trabalho comprometido e o risco de vazamento da sua estratégia.
Mas o campo tem falado muito -outro jargão que ele abraçou. Jogo com intensidade, ofensivo, controle de posse de bola e marcação pressão fazem parte do repertório.
Essa química até agora resultou em três títulos -foram 83 jogos, 53 vitórias, 21 empates e nove derrotas. Só perdeu cerca de um a cada nove jogos que comandou no Flamengo.
“Iremos ganhar sempre? Não. Mas aí estão as convicções do treinador e eu seguirei elas até o final”, disse ele, depois da vitória mais recente sobre o Palmeiras no Brasileirão.
A satisfação por estar na atual função é verbalizada sempre que possível.
Filipe não passou um dia sequer como aposentado. A transição do campo para o banco foi imediata.
“Eu lembro que estava numa festa na despedida dele, depois do jogo contra o Cuiabá (pelo Flamengo). Brinquei com ele e a mulher: ‘Pô, Filipe, ficou tanto tempo no futebol, pega um ano sabático agora, leva sua mulher para a passear’.
Ele falou: ‘Eu não consigo, não foi isso que eu planejei, quero já ter um rumo para a minha carreira’”, disse Guilherme Siqueira. Ele menciona ainda a reação de Patrícia, esposa do futuro técnico: “Ela disse: ‘Esse aqui não consegue ficar quieto de jeito nenhum’”.
CHEFE DOS EX-COMPANHEIROS E CONVICÇÕES
A missão de comandar ex-companheiros de equipe era uma das preocupações quando o treinador recebeu de Marcos Braz, então vice de futebol do Flamengo, a missão de substituir Tite.
“Quando ele aceitou, já sabia o que era facilitador e o que era obstáculo. Conhecer o elenco, o clube, a estrutura era facilitador. Um grau de obstáculo seria ter jogado com o pessoal. Mas isso foi administrado logo no começo”, disse Braz à reportagem.
A primeira bomba desarmada foi Gabigol, artilheiro escanteado por Tite e com quem Filipe teve relação intensa no tempo de jogador: “Briguei com ele. Amei ele. A gente se beijou, discutiu, se xingou e ficou três meses sem se falar”, lembrou o treinador.
Gabi foi protagonista da final da Copa do Brasil, o primeiro título de Filipe Luís. Depois, ainda vieram a Supercopa e o Campeonato Carioca.
Tinha também Arrascaeta, amigo dentro e fora de campo. O coração falou mais alto e Filipe Luís decidiu ir até a casa do uruguaio para uma conversa.
O técnico expôs que, como comandante, teria que tomar decisões que nem sempre seriam do agrado de todos e que, se precisasse, colocaria o meia no banco. Ressaltou que, se fizesse isso, não mudaria a amizade e o respeito pelo craque. Arrascaeta afirmou que entendia, e o camisa 10 se tornou o principal jogador do time em 2025.
A combinação entre o que vê no treino e no adversário é o que Filipe tenta aplicar a cada jogo. E isso vem de um termo que ele usa muito: convicção.
“A gente acredita muito nas convicções dele. A gente tem um grupo repleto de jogadores de qualidade. A gente sabe que em algum momento um ou outro vai ficar de fora, por uma questão de jogo mesmo. Mas a gente sabe que qualquer um que jogar vai dar conta do recado”, afirma Léo Ortiz, zagueiro do Flamengo.
A dinâmica sobre como comandar ex-colegas de time é um dos assuntos que Filipe Luís já abordou em entrevistas e também na mentoria que faz com o ex-técnico René Simões.
“O grande problema é se fazer entender como ‘eu não sou mais um de vocês’. É importante ter essa linha. Ele adota, é muito inteligente nisso”, descreve René à reportagem.
As corridas nos treinos e os bobinhos são alguns dos momentos em que Filipe Luís se mistura com os demais jogadores.
“Existe uma diferença entre teimosia e convicção. Teimosia é quando eu acredito em alguma coisa e não aceito refletir sobre ela. Convicção é quando eu tenho certeza de alguma coisa, mas alguém me faz tirar os óculos e olhar de outra forma. E aí você percebe que a primeira forma com a qual você olhou é mesmo a certa. Ele está sempre convicto porque reflete. Ele faz a reflexão”, diz Simões.
DE ONDE VEM A MENTORIA?
Ex-técnico da Jamaica, da seleção feminina e de grandes clubes brasileiros, René Simões ainda trabalhava como coordenador técnico do Zinza FC, time das divisões inferiores do Carioca, quando se encontrou com Filipe Luís em um jogo-treino do Flamengo.
Filipe contou a René que seria treinador. Conversaram a respeito e René disse que poderia mandar alguns materiais ao futuro técnico -até porque hoje tem uma empresa que classifica como academia da mente.
A relação virou mentoria depois que Filipe perdeu o primeiro jogo comandando o Flamengo. Logo um clássico diante do Fluminense de Mano Menezes, no Brasileirão de 2024.
Filipe descreve aquela noite como uma das piores que teve no futebol. E René mandou uma mensagem que gerou impacto.
“Parecia estar dentro do meu cérebro, me falando tudo que eu estava sentindo”, descreveu o técnico do Flamengo. Então, estreitaram os laços.
René diz que tem participação em 1% do que Filipe Luís se tornou ao longo do último ano. Eles não falam de tática. Mas abordam como reagir e se expressar diante das situações inerentes ao cargo, em um clube que repercute como o Flamengo.
“Eu não mudo o que ele pensa. Só dou alguns toques. Ele é um cara muito humilde, sincero, honesto e vai ser um dos gigantes brasileiros como treinador”, disse René.
VEM MAIS TEMPO NO FLAMENGO?
O começo da trajetória teve uma fase cinzenta entre ser interino e se concretizar como aposta em um clube que troca muito de técnico. Hoje, ele já disse que pretende ser feliz no Flamengo por mais algum tempo.
O salto do sub-20 para o profissional foi com a promessa de que teria relativa estabilidade, apesar de, à época, o clube estar em período eleitoral.
“Eu liguei para o Filipe e me encontrei com ele. ‘Filipe, não vou te colocar como interino até o final do ano. É importante que os jogadores entendam que você não vai ficar até o final’. Eu tinha que contratar o técnico, entendemos que seria ele. Ele estava preparado. Eu achava que era justo naquele momento”, revela Marcos Braz.
Com a vitória eleitoral do então opositor Luiz Eduardo Baptista, o Bap, Filipe Luís só teve a confirmação de que ficaria no clube em 2025 depois da chegada de José Boto para dirigir o futebol.
O primeiro encontro presencial foi em uma propriedade da família de Boto no norte de Portugal. O técnico estava de férias na Espanha e dirigiu até lá. Comeram e conversaram o dia inteiro.
Boto viu em Filipe características de outros técnicos europeus promissores.
Filipe Luís discute a renovação para 2026. Ao Fenerbahçe, da Turquia, ele recentemente disse não. O técnico e a família flamenguista querem mais.
“O ‘pode’ não é o ‘fez’. Quanto mais pressão, quanto mais as coisas são difíceis, mais eu desfruto desse trabalho. O difícil vai ser um dia não estar vivendo esse momento que estamos agora”, afirma o técnico.

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