RENAN MARRA
SÃO PAULO, SP (CBS NEWS) – Os Estados Unidos criaram o Plano Marshall para reconstruir a Europa capitalista após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e despejaram o equivalente hoje a cerca de US$ 170 bilhões (R$ 915,3 bi), no valor ajustado pela inflação, em 17 países do continente.
Quase metade dessa quantia será necessária, segundo organizações internacionais, para reerguer a Faixa de Gaza, território do tamanho de um quarto do município de São Paulo que foi devastado por dois anos de guerra entre Israel e Hamas.
A reconstrução da faixa, reduzida a escombros, poderá levar décadas e custará ao menos US$ 70 bilhões (R$ 377 bi), segundo as Nações Unidas. Desde outubro de 2023, quando o conflito começou, cerca de 80% das estruturas de Gaza foram destruídas ou danificadas, de acordo com o Centro de Satélites da ONU.
Hospitais, escolas, redes de energia e sistemas de água e de esgoto foram comprometidos, o que deixou mais de 2 milhões de pessoas em situação de emergência humanitária. O restabelecimento desses serviços, segundo especialistas, exigirá esforço semelhante ao feito aos europeus no pós-guerra.
A diferença é que, enquanto o Plano Marshall foi criado com ambiente de relativa estabilidade, os planos para reestruturar Gaza têm obstáculos que vão além de questões financeiras. O principal deles é político.
O território continua sob bloqueio imposto por Israel e, mesmo com o acordo para cessar-fogo assinado há três semanas, tem sido bombardeado pelas forças de Tel Aviv. O Estado judeu acusa o grupo terrorista Hamas de desrespeitar o pacto e justifica as ações com o argumento de legítima defesa.
“Embora Gaza seja relativamente pequena, a reconstrução será complexa por vários motivos: primeiro, não acontecerão investimentos massivos sem que o território esteja pacificado; segundo, a área está arrasada, e os volumes de materiais necessários serão muito grandes, porém não há serviços de ferrovia ou de rodovia”, diz o economista Marcio Sette Fortes, professor de Relações Internacionais do Ibmec-RJ.
Fortes, ex-diretor do Banco Interamericano de Desenvolvimento, diz que os recursos para Gaza terão de ser transportados, sobretudo, pela via marítima, uma vez que o território não tem capacidade para produção própria. “Mesmo a Segunda Guerra não destruiu a infraestrutura completa dos países europeus, que conseguiram manter parte de seus meios de produção. Em Gaza, é diferente”, afirma.
Somente nos próximos três anos, segundo a ONU, serão necessários US$ 20 bilhões (R$ 107,6 bi) para as primeiras etapas da reconstrução. Os recursos seriam usados para o restabelecimento dos serviços mais urgentes, caso da reconstrução de hospitais, dos sistemas de água e da remoção de entulho, uma etapa delicada devido à presença de materiais contaminados e de munições que não foram detonadas.
Mais de 61 milhões de toneladas de detritos foram geradas em Gaza, dos quais apenas 81 mil (0,13% do total) tinham sido removidas até a metade de outubro. Para efeito de comparação, o volume é maior do que a deixada na guerra da Rússia contra a Ucrânia, ainda segundo estimativa das Nações Unidas, apesar de o conflito ter começado antes e de a fronteira ser bem mais extensa no caso do Leste Europeu.
Cerca de 15% desse material pode estar contaminado por substância perigosas, incluindo resíduos industriais, metais pesados e amianto, um mineral tóxico que pode ser inalado quando as fibras microscópicas são liberadas ao ar, algo comum durante as demolições.
Os riscos ambientais, portanto, são fatores de grande preocupação para a reconstrução, diz Jamon Van Den Hoek, professor associado de Geografia na Universidade do Estado de Oregon, nos EUA.
Autor de projeto que mapeou as edificações atingidas no território, ele diz que a infraestrutura fundamental para a sobrevivência deve ser bem estabelecida antes que investimentos sejam alocados para qualquer projeto de reconstrução em larga escala. Isso inclui acesso à água e à eletricidade.
Em paralelo, a recuperação do ecossistema é tida como essencial para a melhora imediata das condições de saúde e de segurança alimentar dos palestinos. Relatório do Unep, o programa ambiental da ONU, aponta que o colapso das estações de esgoto, a destruição das redes de encanamento e o uso de fossas sépticas improvisadas agravaram a contaminação do aquífero que abastece a população.
Os danos provocaram crise hídrica, comumente relacionada ao aumento de doenças infecciosas. Casos de diarreia aguda, por exemplo, aumentaram 36 vezes desde o começo do conflito.
A destruição também compromete a segurança alimentar: Gaza perdeu 97% das árvores e 82% das plantações, tornando impossível a produção de alimentos em larga escala. O colapso agrícola ocorre num contexto de crise humanitária severa, com mais de 500 mil pessoas em situação de fome.
Em projetos de reconstrução, a ONU aponta como urgente a restauração dos sistemas de água e de saneamento, bem como a remoção de entulhos, para conter doenças e evitar novas contaminações. Numa etapa posterior, mas ainda no curto prazo, orienta limpezas em áreas rurais e monitoramento da qualidade dos alimentos; para o médio e o longo prazos, elenca entre as medidas necessárias o uso sustentável dos recursos hídricos, com técnicas de dessalinização, para recuperar o aquífero local.
Já a remoção da maior parte das munições não detonadas levará de 20 a 30 anos, segundo Nick Orr, da Humanity & Inclusion, ONG com sede na França. Ainda assim, o trabalho não estará completo. “O material está no subsolo. Vamos encontrá-lo por gerações.”
Não há definição sobre quando a reconstrução terá início nem quem assumirá o financiamento. Países árabes, integrantes da União Europeia, Canadá e EUA já manifestaram disposição em contribuir.
Seja como for, Zaha Hassan, advogada e pesquisadora sênior da Fundação Carnegie, afirma que a estimativa de US$ 70 bilhões da ONU é conservadora. “Não tivemos uma avaliação real do terreno”, diz.
“Há enorme necessidade de ajuda imediata. De 5% a 8% da população foi morta ou mutilada. Como remover os escombros, cujo processo levará décadas? E onde depositá-los? Como recolher os 10 mil corpos que, acredita-se, estão sob os escombros? Será necessário bem mais do que levar tratores”, afirma.
Ações ambientais prioritárias na reconstrução de Gaza, segundo a ONU
Medidas mais urgentes
Priorizar a reconstrução dos sistemas de abastecimento de água e sanitários para minimizar surtos de doenças; Fazer a remoção de entulhos para facilitar a entrega de ajuda humanitária e o acesso à infraestrutura essencial; Estabelecer locais adequados para armazenamento temporário e descarte de entulhos, incluindo resíduos perigosos; Fazer triagem e o descarte seguro de entulhos contaminados e resíduos perigosos, incluindo amianto e metais pesados; Medidas para curto prazo
Trabalhos de limpeza em áreas rurais, a fim de diminuir a contaminação na cadeia alimentar; Monitorar a qualidade da água e dos alimentos para orientar restrições e ações corretivas; Desenvolver estratégias para gestão de entulhos e resíduos; Implementar programa de reciclagem de entulhos em larga escala, minimizando impactos ambientais; Medidas para médio e longo prazos
Planejar a utilização sustentável da água, inclusive com técnicas de dessalinização, para permitir a recuperação do aquífero local; Instalar redes de distribuição de água a partir de fontes de produção locais e transfronteiriças, com baixas taxas de vazamento e sistemas adequados de operação e manutenção; Desenvolver sistema de descarte de resíduos sólidos, incluindo sistemas de coleta, aterros sanitários e infraestrutura para reciclar e reutilizar materiais; Estabilizar e preencher túneis subterrâneos que ameaçam a estabilidade acima do solo; Fonte: Programa ambiental das Nações Unidas (Unep, na sigla em inglês)